terça-feira, 7 de janeiro de 2014

E depois de vencer o cancro?

Entrevista com:
Fisioterapeuta Nuno Duarte

P.: É do conhecimento geral que tanto a doença oncológica em si como os próprios tratamentos para essa doença deixam sequelas no corpo do paciente. Em que condições oncológicas é mais frequente a intervenção do fisioterapeuta para debelar essas sequelas, e através de que tipo de técnicas?

Em primeiro lugar é urgente que se desmitifique a intervenção em oncologia. Ao longo dos anos houve sempre a noção que na área da fisioterapia nada se podia fazer ao doente oncológico, que tudo seria contra-indicado... O que na realidade, está longe de ser verdade. Actualmente existe um êxito enorme na luta contra o cancro, conseguindo-se em muitos casos a cura e noutros um aumento de longevidade com uma boa qualidade de vida. 

Nos últimos anos, um dos grandes objectivos da prestação de cuidados ao doente oncológico, a sobrevivência, foi largamente atingido, levando a que o nº de sobreviventes tenha aumentado progressivamente, levando a que os profissionais de saúde se foquem noutro objectivo, a qualidade de vida. Penso que os fisioterapeutas serão um elemento imprescindível a uma equipa que se preocupe com a QdV do doente oncológico. Este será o grande contributo do fisioterapeuta ao doente oncológico, promover a sua QdV. 

A nossa intervenção em oncologia é feita em áreas muito diversificadas, como a  neurológica, ortopédica, vascular, respiratória, pediatria… As técnicas utilizadas serão as mesmas de outras áreas de intervenção, no entanto, torna-se imprescindível que o fisioterapeuta tenha conhecimentos na área da oncologia que permitam ponderar a selecção e aplicação dessas mesmas técnicas. Penso que o fisioterapeuta só poderá ter um desempenho satisfatório em oncologia, caso tenha conhecimento sobre: efeitos das terapias oncológicas (cirurgia, RT, QT, HT, IT), estado emocional do doente oncológico, sinais/sintomas das principais metástases, dor oncológica. 

Será sempre necessário, à semelhança do que acontece noutras áreas de intervenção, que o fisioterapeuta tenha bom senso no decorrer da sua intervenção, que tenha a capacidade de adaptar a sua intervenção às mudanças, por vezes repentinas, do estado clinico do doente oncológico. Esta capacidade não é conseguida apenas com conhecimento teórico, será necessário que exista sensibilidade, uma preocupação constante com o doente, de forma a que seja possível antecipar cenários. Por essa razão, na minha opinião, existem pessoas com um perfil ideal para trabalhar em oncologia, outras vão adquirindo esse mesmo perfil e, alguns nunca chegam a adquiri-lo.

P.: Em qualquer reabilitação física é fundamental o envolvimento do paciente no tratamento, mas talvez nos casos de cancro isso assuma especial importância. O cancro da mama é um bom exemplo desta afirmação. Neste caso específico, que tipo de conselhos e indicações as pacientes levam para casa? Como se processa a reabilitação física em regime ambulatório?
O cancro da mama representa o principal grupo de doentes (em número) num Serviço de oncologia e é sem dúvida, provavelmente, a patologia oncológica com maior impacto na opinião pública. A sua pergunta não permite uma resposta curta, pois dependerá sempre do tipo de terapias oncológicas a que o doente será submetido. Vou responder partindo do princípio que estamos a falar de mulheres submetidas a cirurgias com esvaziamento ganglionar axilar (actualmente existe um nº crescente de mulheres submetidas a cirurgias apenas com biópsia do gânglio sentinela). 

Neste grupo específico, após a cirurgia, as doentes passam a estar inseridas num grupo de risco, quero dizer, passam a ter uma probabilidade acrescida de desenvolver um linfedema/infecções subcutâneas. Este risco permanece ao longo da vida da pessoa e poderá ser potenciado pelas restantes terapias oncológicas e pelo capital linfático (nº de estruturas linfáticas, qualidade da função linfática) de cada pessoa. 

Existem várias formas de abordagem, no entanto, existem linhas de orientação, a nível internacional, pelas quais guiamos a nossa intervenção. No caso específico do IPO de Lisboa, iniciamos a nossa intervenção 24 horas após a cirurgia. Nesta fase são dadas algumas informações (verbalmente e por escrito*) sobre a prevenção do linfedema (evitar efeitos de garrote, fontes de calor, esforços muito repetidos, pesos para além de 2Kg…) e de infecções subcutâneas (hidratação diária do membro, proteger-se sempre que exista perigo de corte/picada, desinfectar qualquer tipo de ferimento…). Iniciamos também um programa de exercícios que terão em conta a presença de drenos e/ou pontos. 

Aproximadamente 3 a 4 semanas após a cirurgia, geralmente numa fase em que as pequenas complicações pós cirúrgicas (linforreia abundante, seroma, deiscência…) estão resolvidas, iniciamos um tratamento no nosso Serviço. Inicialmente o tratamento é individual e dependerá sempre das complicações apresentadas (edema da mama/ parede, trombose dos linfáticos, aderências cicatriciais, diminuição da amplitude muscular, dor, alterações de sensibilidade…). 

Quando a doente já tem amplitudes normais ou próximas do normal, inicia uma classe de movimento, com o objectivo de aumentar a força muscular, a resistência ao esforço, aumentar/manter amplitudes articulares, promover o convívio com outras pacientes. O apoio por parte do fisioterapeuta dependerá sempre do protocolo de terapias oncológicas a que a doente está a ser submetida. Importa referir que a doente deve manter essa classe no decorrer da radioterapia. 

As doentes, após a alta, são reavaliadas periodicamente, contando com o apoio do nosso Serviço, ao longo de toda a sua vida. Por exemplo, nós tratamos pessoas com linfedema, que foram submetidas a cirurgia/RT há 40 anos atrás…A ideia é apoiar sempre que necessário.
*Nota: Podem consultar todos os folhetos que o IPOLFG disponibiliza aos seus doentes no site da instituição.

P.: Infelizmente, parece que o cancro é uma doença cada vez mais comum, e sempre associada ao estigma de um tratamento difícil, longo e doloroso. Sabendo que é uma questão difícil, mas sendo um profissional que já tratou tantos doentes de cancro... Quais são para si os principais motivos a que as pessoas se "agarram" quando é tempo de lutar contra esta doença? Pessoalmente, que palavra de motivação daria a uma pessoa nesta condição?
Não é fácil responder a essa questão. Na realidade o doente oncológico, à semelhança de outros doentes, pode passar por diferentes fases de adaptação à doença e, no nosso dia-a-dia, deparamo-nos com doentes que estão perfeitamente lúcidos sobre a sua real condição e outros que aparentemente têm uma negação à doença, mas em geral existe uma característica comum que passa por uma capacidade enorme (por vezes inexplicável) de lutar, de aguentar todo o trajecto de luta contra a doença. Sinceramente não me sinto confortável em opinar sobre essa matéria, pois não seria justo divagar sobre algo (o que leva as pessoas a não baixarem os braços) que na realidade desconheço…Pois as motivações, provavelmente, variam de pessoa para pessoa.

A minha única palavra para com as pessoas que estão a viver essa realidade é a de que felizmente nos últimos anos existiu um avanço enorme na oncologia médica, que permite que as pessoas não pensem no cancro como um sinónimo de “morte anunciada”, de algo contra o qual nada se pode fazer…A realidade actual é bem diferente e a cura é uma realidade.




Nuno Miguel de Faria Bento Duarte
Fisioterapeuta, doutorando em Saúde Pública/ramo de Epidemiologia (ENSP/UNL).
- Fisioterapeuta Coordenador do Serviço de Medicina Física e Reabilitação do Instituto Português de Oncologia FG Lisboa 
- Docente da Escola Superior de Saúde do Alcoitão  (Fisioterapia em oncologia/Terapia Linfática Descongestiva).
- Docente convidado da Faculdade de Medicina de Hannover no projecto “PoLyEurope Postgraduate Lymphology Training in Europe”.
- Representante da Ecole de Drainage Lymphatic Bruxelles / Methode Leduc em Portugal.
- Formador em cursos na área de “Tratamento do edema / Fisioterapia no cancro da mama”.
- Membro da Sociedade Europeia de Linfologia.