Entrevista com:Professor Doutor José Alberto Ramos Duarte
P.: Ultimamente tem-se debatido vantagens/desvantagens do
exercício físico. Na sua opinião, esta é uma questão que se responde
como no ditado "a dose faz o veneno"? Nesse caso, haverá uma dose que
será razoável aconselhar, sem descurar a obtenção de resultados satisfatórios?
R: Importa esclarecer que os efeitos da atividade física regular, ou do
exercício físico repetido no tempo, serão tanto mais notórios para quem segue
este estilo de vida, comparativamente aos demais elementos da população, quanto
maior for o nível de sedentarismo dessa sociedade. De facto, considerando
que a estrutura e a função orgânica estão intimamente associadas, pode-se
afirmar com alguma segurança que o Homem é, biologicamente, um ser vocacionado
para o movimento. Contudo, com o desenvolvimento tecnológico e a rápida
suavização da exigência imposta pelo meio ambiente, as populações
foram-se tornando cada vez mais sedentárias, sendo esta condição, a par do
aumento da longevidade e da abundância de alimentos altamente energéticos, uma
das principais razões para explicar o aumento da incidência e prevalência das
chamadas doenças cronico-degenerativas nas sociedades
industrializadas.
Deste modo, o exercício físico ou a atividade física
regular apenas se revelam vantajosos para a saúde humana, não porque tenham
intrinsecamente alguma "fórmula química especial" com "efeitos
miraculosos", mas tão somente porque a inatividade física é uma condição
nefasta e inadequada à biologia humana, predispondo os sujeitos ao aparecimento
de patologias e doenças.
Respondendo concretamente à questão colocada,…sim,…tal
como com qualquer fármaco, também com o exercício físico a dose administrada
fará o veneno pois, se por um lado, doses muito baixas possuem poucas
repercussões orgânicas, com poucas vantagens relativamente aos demais
indivíduos sedentários da população, por outro lado, as doses mais elevadas,
pela sobrecarga metabólica e mecânica impostas aos diferentes órgãos e
sistemas, poderão ter repercussões nefastas, podendo mesmo, em situações pontuais,
culminar ou na morte do indivíduo durante o exercício ou, em termos crónicos,
motivar o aparecimento de patologias do foro ortopédico ou outros, reduzindo
assim a saúde e a qualidade de vida dessas pessoas.
Os atletas de alto
rendimento que estão sujeitos a elevadas cargas de treino físico, com os
problemas associados da morte súbita induzida pelo exercício ou das patologias
e doenças que os acometem mais tarde na sua vida futura, constituem um bom
exemplo da toxicidade aguda e crónica do exercício físico regular em altas
doses. Por isso mesmo, embora o treino de alto rendimento desportivo tenha por
objetivo aumentar a funcionalidade e a capacidade de realizar trabalho no
presente, os atletas que o praticam pagam, na sua vida futura, um preço bem
alto em termos de saúde e qualidade de vida, por terem optado por este tipo de
comportamento aquando jovens.
Do ponto de vista teórico, a dose ideal
(considerando a intensidade, o tempo e os períodos de recuperação entre
exercícios) deverá estar na mancha cinzenta compreendida entre as situações
extremas de sedentarismo e do alto rendimento desportivo, permitindo aos
indivíduos um aumento de funcionalidade comparativamente ao sedentário mas,
simultaneamente, um menor risco para a saúde comparativamente aos atletas de
alto rendimento.
P.: A questão das alterações morfológicas que o exercício provoca,
sobretudo nos jovens atletas em fase crescimento, é cada vez mais uma
preocupação para pais e treinadores. Consegue dar-nos exemplos de boas práticas
para evitar complicações clínicas, ou sinais a estar atento.
R: Há cada vez mais convicção que o exercício físico, quando praticado em
idades jovens, de forma regular e em doses ajustadas individualmente, é
extremamente vantajoso para o desenvolvimento biológico, psicológico e social
dos seus praticantes. Esta maior exigência orgânica, funcional e metabólica,
imposta pelo comportamento dos indivíduos, parecer ser extremamente vantajosa
não só para o crescimento, mas também para a maturação de diferentes órgãos e
sistemas, nos quais se incluem o sistema nervoso central, o sistema locomotor e
o sistema cardiorrespiratório. De facto, são muitas as evidências científicas
mostrando um aumento da qualidade da massa óssea, da qualidade da massa
muscular esquelética, da melhor adaptabilidade cardiovascular e respiratória a
situações de stress, da maior capacidade de desenvolvimento cognitivo e da
melhor integração social observada nos indivíduos fisicamente ativos
comparativamente aos sedentários.
Assim sendo, as alterações morfológicas
impostas pelo exercício físico regular, em doses adequadas, parecem ser
extremamente benéficas para o desenvolvimento futuro das crianças e
adolescentes. Contudo, como a dose faz o veneno, também se acredita que elevadas
cargas de treino físico em crianças possam comprometer o seu normal
desenvolvimento. Assim, os casos de fraturas ósseas de fadiga, de
fechamento precoce das metáfises ósseas, de infecções respiratórias de
repetição, de patologias inflamatórias crónicas musculotendinosas, de luxações
ou subluxações articulares de repetição, de alterações comportamentais e
humorais, podem ser bons exemplos de se ter ultrapassado, em termos biológicos,
a capacidade adaptativa orgânica à sobrecarga mecânica e metabólica imposta
pelo treino físico aos diferentes sistemas. É tudo uma questão de uma maior ou
menor exposição ao risco e, simultaneamente, de sorte ou de azar conjuntural! É
claro que todos os indivíduos, mesmo os menos ativos, estão também sujeitos à
ocorrência destas patologias ou doenças, contudo, o maior risco, por maior
exposição, ocorre nos atletas de alta competição.
Normalmente, os treinadores
estão muito atentos ao problema da intensidade e da duração dos exercícios
físicos. Contudo, apesar destas características do exercício serem importantes
para aumentar ou atenuar o risco de ocorrência de patologias ou doenças, talvez
um factor tão ou mais importante seja o período de recuperação entre
exercícios. Períodos de recuperação incompletos, tais como aqueles preconizados
no treino de resistência, são os que mais comprometem a capacidade adaptativa
orgânica, uma vez que o reduzido período de recuperação entre exercícios limita
a capacidade orgânica de reparar as alterações homeostáticas induzidas pelo
exercício prévio.
P.: Que o corpo reage de maneira diferente à medida que vamos envelhecendo
já temos consciência. Mas consegue explicar-nos em linhas gerais o porquê
disso acontecer e como podemos atenuar os efeitos físicos do processo de
envelhecimento?
R: Os organismos biológicos caracterizam-se pela
redundância dos seus componentes biológicos, a qual, a diferentes níveis de organização,
se traduz pelo número excedente de órgãos, de células, de organelos ou mesmo moléculas.
Por exemplo, podemos perfeitamente viver sem um rim, sem uma porção do fígado
ou mesmo do pulmão. Continuaríamos a ouvir ou a ver apenas com um ouvido ou um
olho e a nossa viabilidade não ficaria comprometida, por exemplo, com menos um
braço ou uma perna.
Para uma abordagem deste assunto, com um carácter mais
didático, vamos considerar a célula como a unidade estrutural e funcional
orgânica e, assim, analisar a redundância celular. É aceite que possuímos um
maior número de células nos vários órgãos do que aquele que precisaríamos para
assegurar a sua normal funcionalidade em situações basais. Toda a massa de células
redundantes de um determinado órgão é, por isso, responsável por uma
funcionalidade acrescida relativamente aquela necessária para situações basais,
a qual não precisamos para as exigências funcionais do dia a dia e que reservamos
para situações de maior exigência funcional. A diferença entre a funcionalidade
basal e a funcionalidade máxima do órgão é denominada por capacidade funcional
de reserva. Em consequência das constantes agressões ambientais a que nos
sujeitamos diariamente ao longo da vida, muitas células vão perdendo
funcionalidade e vão morrendo, não sendo totalmente substituídas por novas
células.
Isto significa que, com o tempo, vamos perdendo redundância celular,
perda essa que se traduz por uma diminuição progressiva da capacidade funcional
de reserva e pela menor capacidade adaptativa a situações de stress.
De facto,
todo o trabalho associado à funcionalidade orgânica de base que era, tempos idos,
distribuído por um grande número de células, cabendo a cada uma delas uma pequena
fatia desse trabalho, passa a ser progressivamente distribuído por um número de
células cada vez menor, com a consequente maior exigência funcional imposta a
cada uma delas e, dessa forma, motivando em cada uma maiores desequilíbrios
homeostáticos, com maior susceptibilidade de lesão e morte. Esta ocorrência vai
limitando não só a capacidade máxima do órgão mas também a capacidade de cada
célula de responder a situações de exigência acrescida, tornando-as mais
susceptíveis à morte. Esta situação será tanto mais grave, colocando em risco a
capacidade adaptativa do indivíduo (e, em última análise, a sua própria vida) exposto
a situações extremas de maior exigência funcional, quanto maior for a exposição
ambiental a esses agentes tóxicos, exposição essa que se associa diretamente
com a idade cronológica e com os comportamentos de risco das pessoas.
O
envelhecimento é considerado, por isso mesmo, não um fenómeno, mas antes uma
propriedade que caracteriza os seres que possuem elementos redundantes! Quem
não os possui não pode envelhecer: se o único elemento falhar, morre-se! Pelo
exposto, facilmente se depreende que o envelhecimento é irreversível.
Do ponto de vista científico, ainda não se sabe qual
o efeito do exercício físico regular no envelhecimento biológico. Do ponto de
vista teórico, se, por um lado, o aumento da exigência imposta aos órgãos pelo
exercício parece promover a morte de células mais susceptíveis e a sua
substituição por outras mais jovens e mais funcionais (parece haver um
rejuvenescimento no presente), por outro lado, este maior turnover celular pode, em termos futuros, promover o esgotamento
precoce de células stem e, assim
sendo, comprometer a capacidade regenerativa, a longo prazo, desse órgão.
Não
se sabe ainda responder a esta dúvida. Para acentuar ainda mais a confusão
sobre o tema, há que considerar que a diminuição da funcionalidade máxima de um
determinado órgão que ocorre com a idade cronológica, não é da responsabilidade
exclusiva do envelhecimento biológico, havendo também uma importante
contribuição da baixa exigência funcional cronicamente imposta ao órgão. Por
exemplo, a nível muscular esquelético, tem sido demonstrado que o treino físico
aumenta a força muscular máxima em indivíduos idosos. Isto significa que o
treino combate o envelhecimento? Não, porque o envelhecimento biológico tem um
carácter irreversível! O próprio desuso muscular contribuiu para essa redução
da força e, assim, no fenótipo de um indivíduo idoso, torna difícil separar o
que é resultado do envelhecimento do que é consequente do desuso orgânico.
P.: Para terminar, algum novo projecto de investigação na calha? Ou
sugestão de temas que seriam interessantes investigar no futuro?
R: Neste momento há vários projetos financiados de investigação fundamental
a decorrer no laboratório que coordeno. Um diz respeito à plasticidade do
tecido ósseo e às suas alterações celulares, de organização estrutural e de
constituição da matriz orgânica e inorgânica, em resposta a alterações
hormonais e à sobrecarga mecânica crónica. Um outro diz respeito aos mecanismos
de cardioproteção motivados pelo treino físico. Existe ainda um outro projeto
relacionado com a influência do exercício físico regular nos mecanismos de
reparação celular (heteroplasmia mitocondrial) e tecidual (cicatrização vs.
Regeneração) do músculo esquelético.
Professor Doutor José Alberto Ramos Duarte
Professor catedrático da Faculdade
de Desporto da UP
Licenciado em medicina e doutorado em biologia do
desporto
Diretor do curso de doutoramento em Fisioterapia
Editor do International Journal
of Sports Medicine
Editor dos Archives of Exercise
in Health and Disease
211 artigos científicos publicados em revistas
internacionais peer-review.